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DIREITO PROCESSUAL PENAL – AÇÃO PENAL

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DIREITO PROCESSUAL PENAL – AÇÃO PENAL



Corrupção passiva e lavagem de dinheiro – 3.



 



Brasília, 28 de maio a 1º de junho de 2018 – 



 



INFORMATIVO Nº 904.





A Segunda Turma, em conclusão de julgamento, condenou parlamentar pela prática dos crimes de corrupção passiva [Código Penal (CP), art. 317(1) ] e lavagem de dinheiro [Lei 9.613/1998, art. 1º, § 4º(2)], e seus filhos pelo segundo delito (Informativo 902 e Informativo 903).



Na denúncia, o parlamentar, na qualidade de integrante de cúpula partidária, foi acusado de ter concorrido para desvios de recursos realizados na estatal, por meio de apoio político à indicação e manutenção de diretor naquela entidade, o qual lhe teria repassado valores ilícitos, como contraprestação.



Para o Colegiado, os acusados efetivamente cometeram os crimes cuja prática lhes foi atribuída, embora em extensão menor do que a descrita na denúncia. O juízo condenatório se impõe, considerada a existência de provas da autoria e da materialidade dos fatos delituosos, bem como do nexo de causalidade entre a conduta desses acusados e os resultados.



Ressaltou que o regime presidencialista brasileiro confere aos parlamentares um espectro de poder que vai além da mera deliberação de atos legislativos, com participação nas decisões de governo, inclusive por meio da indicação de cargos no Poder Executivo. Essa dinâmica é própria do sistema presidencialista brasileiro, que exige uma coalizão para viabilizar a governabilidade.



A despeito desse “presidencialismo de coalizão”, a Constituição Federal (CF) atribui ao Congresso Nacional (CN) competência exclusiva para fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Executivo, incluídos os da Administração Indireta [CF, art. 49, X(3)].



Nesse âmbito, o CN foi dotado de poderes próprios de autoridade judicial, quando instituídas comissões parlamentares de inquérito para apuração de fatos determinados, com encaminhamento de suas conclusões ao Ministério Público para responsabilização civil e criminal de infratores [CF, art. 58, § 3º(4)].



Ademais, para evitar conflitos de interesses, aos deputados e senadores é constitucionalmente vedado, desde a expedição do diploma: “a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes; e b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades constantes da alínea anterior.” [CF, art. 54, I, “a” e “b”(5)].



Nesse contexto institucional, a percepção de vantagens indevidas, oriundas de desvios perpetrados no âmbito de entidades da Administração Indireta, em troca de sustentação política a detentores de poder de gestão nessas instituições, implica evidente ato omissivo quanto à função parlamentar de fiscalizar a lisura dos atos do Poder Executivo.



Quanto à corrupção passiva, a integral realização de sua estrutura típica exige uma relação entre a conduta do agente — que solicita, ou que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida — e a prática, que até pode não ocorrer, de um ato determinado de seu ofício.



O exercício ilegítimo da atividade parlamentar, mesmo num governo de coalizão, é apto a caracterizar o ato de ofício viciado que tipifica o delito, se motivado pela solicitação, aceitação ou recebimento de vantagem indevida.



Esse tipo penal tutela a moralidade administrativa e tem por finalidade coibir e reprimir a mercancia da função pública, cujo exercício deve ser pautado exclusivamente pelo interesse público. Não se trata simplesmente de criminalizar a atividade político-partidária, mas de responsabilizar os atos que transbordam os limites do exercício legítimo da representação popular.



No caso, a Turma entendeu ter ficado comprovado que a sustentação política assegurada pelo parlamentar, em favor da manutenção do diretor da estatal, configurou ato de ofício para fins de enquadramento no crime de corrupção passiva.



A denúncia apontou que os réus teriam praticado diversos atos de corrupção. De um lado, o parlamentar teria concorrido, em concurso de pessoas, com todos os desvios praticados pelo diretor da companhia. De outro, os réus teriam recebido vantagens indevidas por meio de pagamentos: (a) periódicos (ordinários); (b) esporádico (extraordinário); e (c) por meio de doação eleitoral oficial.



Quanto à coautoria, o conjunto probatório produzido nos autos é insuficiente para confirmar a adesão subjetiva do parlamentar aos atos de corrupção praticados pelo diretor, embora tenha se beneficiado de vantagens indevidas, e ainda que seja provável a sua ciência do estratagema criminoso. Essa circunstância impede a incidência da norma de extensão prevista no art. 29(6) do CP.



No tocante à imputação de recebimentos periódicos (ordinários) de vantagens indevidas, o quadro probatório é diverso e robusto. Os depoimentos prestados em juízo por colaboradores são uníssonos, coesos e firmes em afirmar que o deputado recebeu vantagens indevidas, que lhes eram disponibilizadas mediante a entrega de dinheiro em espécie.



Embora apenas as declarações dos colaboradores, de forma isolada, não sirvam para fundamentar um decreto condenatório, nos exatos termos do que preceitua o art. 4º, § 16(7), da Lei 12.850/2013, os fatos retratados encontram consistente suporte em outros elementos de prova (cruzamento de dados de companhias aéreas; afastamento de sigilo bancário; perícias em sistemas de contabilidade de pagamentos de propina; depoimentos de testemunhas; e quebra e disponibilização de dados telefônicos), produzidos sob o crivo do contraditório.



Esse conjunto de provas atesta e reforça a veracidade das declarações prestadas no âmbito de colaboração premiada e autoriza a sua utilização como fundamento à resolução do mérito da causa penal.



Desse modo, a Segunda Turma concluiu que tais provas confirmam a tese acusatória exposta na exordial e afastam qualquer dúvida acerca do efetivo recebimento pelo parlamentar de vantagens indevidas de forma ordinária e periódica, o qual contou com o auxílio de seus filhos em algumas oportunidades.



No que se refere ao recebimento esporádico (extraordinário), a Procuradoria-Geral da República (PGR) apontou que o parlamentar teria recebido pagamento vultoso destinado a campanha eleitoral.



Embora coerente com as descrições fáticas prestadas pelos colaboradores, essa acusação não encontra respaldo em outras provas produzidas na instrução criminal, circunstância que encaminha à dúvida, o que impede o seu uso para a formação do juízo de mérito da causa penal, conforme vedação legal (7).



Nesse ponto, portanto, a PGR não se desincumbiu do ônus que lhe é imposto pelo art. 156(8) do Código de Processo Penal (CPP), sendo inviável o acolhimento da pretensão requerida na exordial acusatória.



Por fim, o Colegiado, por maioria, absolveu o parlamentar da acusação relativa ao recebimento de doação eleitoral oficial, que foi materializada de acordo com a legislação aplicável e regularmente declarada na prestação de contas eleitoral. Ao contrário do apontado na denúncia, não se trata de negócio jurídico simulado, o qual teria sido realizado para encobrir a verdadeira finalidade da transferência de recursos.



Com relação ao crime de lavagem de dinheiro, o “Parquet” apontou que os réus teriam contribuído para as ações de lavagem de capitais, tanto nos desvios operacionalizados no âmbito da diretoria da Petrobras quanto nas vantagens indevidas por eles percebidas em consequência dos atos de corrupção passiva supostamente praticados.



De início, a Turma reafirmou a jurisprudência deste STF no sentido de que a percepção de valor indevido, por parte do próprio sujeito ativo do delito de corrupção passiva ou por interposta pessoa pode configurar o delito de lavagem de capitais. Esse enquadramento pressupõe a prática de atos autônomos de ocultação do produto do crime antecedente, já consumado (INQ 2.471; AP 470 e AP 694).



Impende destacar que o crime de lavagem de dinheiro é autônomo em relação à infração penal antecedente, sendo perfeitamente possível que o autor do ilícito anterior seja o mesmo do crime de lavagem de capitais, tendo em vista que não há, na legislação brasileira, qualquer vedação à chamada “autolavagem” (HC 92.279).



O parlamentar, entretanto, foi absolvido no que tange à participação em todos os crimes de lavagem de dinheiro praticados em decorrência de contratos celebrados por empresas cartelizadas no âmbito de diretoria da estatal [CPP, art. 386, VII(9)].



Nos casos em que se atribui determinada prática delitiva em concurso de pessoas, é imprescindível que se verifique a existência do vínculo subjetivo na conduta dos agentes consorciados, bem como a relevância causal da atuação de cada um deles na violação do bem jurídico tutelado pela norma penal, sob pena de não incidência do referido preceito extensivo, diante da impossibilidade de responsabilização penal objetiva.



No que se refere à apontada lavagem do produto da corrupção passiva correspondente aos recebimentos periódicos (ordinários) de vantagens indevidas, o conjunto cognitivo dos autos não permite a escorreita identificação de todos os atos de branqueamento atribuídos aos acusados.



De um lado, os réus foram absolvidos das imputações relativas aos crimes de lavagem de capitais consubstanciados nos recebimentos em dinheiro em espécie [CPP, art. 386, III(10)]. O ato de mero recebimento de valores em dinheiro não tipifica o delito de lavagem, seja quando recebido por interposta pessoa ou pelo próprio agente público que acolhe a remuneração indevida.



Por outro lado, a Turma entendeu que o depósito fracionado do dinheiro em conta corrente, em valores que não atingem os limites estabelecidos pelas autoridades monetárias à comunicação compulsória dessas operações, é meio idôneo para a consumação do crime de lavagem. Trata-se de modalidade de ocultação da origem e da localização de vantagem pecuniária recebida pela prática de delito anterior.



Nesse escopo, ficou demonstrado que o deputado, logo após receber recursos em espécie a título de propina, praticou, de modo autônomo e com finalidade distinta, novos atos aptos a violar o bem jurídico tutelado pelo art. 1º(2) da Lei 9.613/1998, consistentes na realização de depósitos fracionados em conta de sua titularidade, cujo somatório perfaz a exata quantia que lhe fora disponibilizada.



No mais, pontuou que ficou demonstrada a incompatibilidade entre os rendimentos auferidos pelo parlamentar com as quantias movimentadas em suas contas-correntes e os valores em espécie declarados à Receita Federal, o que caracteriza a formação dolosa de patrimônio supostamente “lícito”, conduta que se amolda perfeitamente ao delito de lavagem de dinheiro.



A apresentação de informações falsas em declarações de ajuste anual de imposto de renda foi uma forma de tentar dar um ar de licitude a patrimônio oriundo de práticas delituosas.



Por último, o parlamentar foi absolvido da acusação de lavagem de capitais em decorrência de doação eleitoral. Ainda que eventualmente o valor oficialmente doado fosse produto de crime contra a administração pública, não há prova segura de que: (a) o réu tivesse ciência de sua origem espúria e (b) tivesse agido com o dolo de dissimular essa origem e de promover sua reintegração na economia formal.



Em relação aos efeitos da condenação, a Turma fixou danos materiais, mas indeferiu pedido de danos morais coletivos. Ademais, determinou: (a) a perda de bens e direitos objeto da condenação, ressalvado o direito de lesado ou terceiro de boa-fé [Lei 9.613/1998, art. 7º, I(11)]; e (b) a interdição para o exercício de cargo ou função pública [Lei 9.613/1998, art. 7º, II(12)].



Por fim, quanto à perda do mandato parlamentar, o Colegiado, por maioria, deliberou que a perda do mandato não é automática. Após o trânsito em julgado, cumpre a esta Corte oficiar à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para que delibere a respeito do disposto no art. 55, VI, § 2º(13), da CF. A perda do mandato é medida excepcional e o modo de sua extinção é regulado expressamente na CF.



Vencidos, parcialmente, os ministros Edson Fachin e Celso de Mello, que também condenaram o deputado pelo crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo recebimento de doação eleitoral oficial. Para eles, a doação eleitoral oficial, quando comprovadamente destituída da gratuidade que a qualifica, configura não só o delito de corrupção passiva, mas também o de lavagem de capitais, pois materializa a ação de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.



Vencido, também parcialmente, o ministro Ricardo Lewandowski, que condenou o parlamentar em menor extensão, apenas com relação aos delitos de corrupção passiva praticados ao tempo em que exercia liderança partidária (de 1º.2.2011 a 11.8.2011), quando teria efetivo poder para praticar os atos de ofício imputados, sob pena de responsabilização objetiva.



(1) CP: “Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. § 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.”

(2) Lei 9.613/1998: “Art. 1º. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (...) § 4º A pena será aumentada de um a dois terços, se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa.”

(3) CF: “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (...) X - fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta.”

(4) CF: “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. (...) § 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.”

(5) CF: “Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: I - desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes; b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades constantes da alínea anterior.”

(6) Lei 12.850/2013: “Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: (...) § 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador. ”

(7) CPP: “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (...).”

(8) CC: “Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: (...) II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira.”

(9) CPP: “Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (...) VII - não existir prova suficiente para a condenação.”

(10) CPP: “Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (...) III - não constituir o fato infração penal.”

(11) Lei 9.613/1998: “Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal: I - a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual -, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé.”

(12) Lei 9.613/1998: “Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal: (...) II - a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas no art. 9º, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada.”

(13) CF: “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: (...) VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. (...) § 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.”




AP 996/DF, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 29.5.2018. (AP-996)


Dr. Marcos Ramayana